quinta-feira, 18 de março de 2010

Projeto Ultralice // Nova marca e previsões

Olá leitores, o Ultralice agora tem uma nova marca, que já está sendo usada para as produções do projeto propriamente dito:




Além disso, a principal peça do projeto - um portal de idéias, matérias, fórum, conversas, artigos, resenhas, membros, colaboradores, links, notícias etc. - está sendo construído a todo vapor! Em breve todos estes "monólogos" do projeto vão se tornar um grande debate e uma grande troca de informações sobre o universo das substâncias psicodélicas. Aguardem!

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Projeto Ultralice // Retomada

Olá leitores e seguidores deste blog, o Projeto Ultralice está sendo retomado (após um longo período de mais de 6 meses) e será finalizado no final deste primeiro semestre. A partir de agora serão postadas não apenas informações, matérias e entrevistas sobre o complexo tema das substâncias psicodélicas, mas também novidades e os primeiros esboços do projeto final que foram amadurecidos durante este tempo longe do blog. Aguardem!

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Matérias // Psicodélicos e Recreatividade: As Problemáticas e Riscos do Uso Ilícito


É preciso, antes de tudo, reconhecermos que o uso ilícito de psicoativos ocorre nos mais variados locais e pelos mais variados grupos e através de distintas famílias de químicos: entre elas, as substâncias psicodélicas. Apesar de agirem muito diferentemente de drogas estimulantes como a cocaína e o crack e de drogas depressoras como o álcool, os psicodélicos também incidem em danos à saúde pública. Mas de que forma estes riscos se apresentam? E de que maneira as lesões provocadas pelo abuso e uso inconsciente podem ser efetivamente reduzidas?

// por Ciro MacCord

Durante os anos 60, atamancados na efervescência da Contracultura, os psicodélicos disseminaram-se entre vastas populações, sobretudo de jovens, os principais proponentes do Movimento Hippie – um movimento que, diante do ecatômbico panorama da guerra e de uma completa escassez de perspectivas, procurava questionar a hegemonia capitalista norte-americana, criticando ferozmente a capenga tentativa de suprimir a desesperança do povo através de gadgets inacabáveis e novidades tecnológicas para o conforto. O sonho americano estava sendo mostrado às avessas.

Nesta dinâmica de grandes mudanças sociais e um fluxo que pretendia se finalizar na ruptura, os psicodélicos representaram uma espécie de motor de auxílio. Tais substâncias, até então pertencentes aos domínios da ciência e às mais novas vanguardas que investigavam principalmente o comportamento, o cérebro e a consciência humana, despiram-se da imagem de alcalóides promissores na pesquisa clínica e respostas à natureza do ser e da percepção para tornarem-se o produto do propagandismo hippie que dizia que estas drogas expandiam a mente.

De certa forma, tal propagandismo baseava-se em experiências verídicas e opiniões compartilhadas: parte dos jovens que propuseram o movimento da Contracultura haviam se voluntariado anteriormente para experimentos clínicos com substâncias como o LSD, inclusive para o programa investigativo da CIA, o MKULTRA, que procurava estabelecer estratégias químicas de guerra ou uma busca pelo tão desejado soro da verdade. O insucesso dos testes para a guerra, no entanto, não foi capaz de apagar as experiências profundas e transformadoras vivenciadas pelos voluntários, que, ao juntarem-se a alguns cientistas que abandonaram o caráter acadêmico em função de um certo deslumbre pelos psicodélicos, como o psicólogo Timothy Leary, formaram a base do Movimento Hippie.



Este momento representou o trágico escape das substâncias psicodélicas dos domínios científicos: a disseminação do uso indiscriminado e inconsciente destas drogas significou o fim absoluto das pesquisas clínicas que mergulhou tais químicos em uma moratória científica de aproximadamente três décadas. Durante os anos 60, substâncias como o LSD popularizaram-se até mesmo mais do que a própria maconha (THC) e milhares de jovens e adultos entraram em contato íntimo e direto com os fármacos.

Entrava em cena, pela primeira vez na história dos psicodélicos, o uso recreativo destas substâncias – e de forma massiva. Até então tais drogas já haviam desenvolvido importantíssimos papéis na cultura e religiosidade, como no universo dos povos pré-colombianos, e também, de forma muito expressiva, no mundo científico, mas a sua significância enquanto aspecto modificador da esfera social em larga escala era novidade.

A disseminação do uso recreativo de drogas como o LSD e psilocibina, no entanto, denunciou uma série de riscos e perigos que jamais se apresentaram sob o olhar da religião ou da ciência e, ao contrário do que se supõe inicialmente, não diziam respeito a danos fisiológicos ou dependência, mas sim ao frágil equilíbrio da psique. Estudos sobre os riscos físicos apresentados, como os do químico suíço Albert Hoffman para o LSD, provaram e continuam provando que a toxicidade cerebral destes alcalóides é baixa e que eles não possuem mecanismos capazes de gerar dependência física, ou seja, os riscos fisiológicos não são capazes de acarretar distúrbios orgânicos ou provocar overdose, mas podem apresentar-se como drogas devastadoras no aspecto psíquico.

O grande perigo reside no fato de que os efeitos psíquicos apresentam-se de forma extremamente variada e provocam experiências imprevisíveis e subjetivas: elas podem mergulhar o usuário tanto em uma vivência de êxtase e expansão consciencial como também em uma vivência aterradora de medos profundos, paranóia e pânico (má viagem, bad trip). Os psicodélicos desencadeiam experiências intensas de alteração de percepção, e a natureza das “jornadas”, diferentemente do que se crê, vai muito além do aspecto visual: ela ultrapasse os limites do próprio corpo e pode provocar novas sensações que concernem à natureza do próprio ser e da consciência. Estes efeitos, jamais observados em outra família de fármacos, apresentam-se de maneira profunda e submergem o usuário, vertiginosamente, em um mundo de percepções estranhas e irreconhecíveis, e é aqui que reside o risco: o despreparo e a falta de monitoramente científico ou religioso no trato com estas modificações tão bruscas podem causar severas marcas na psique humana.



Além deste fator, outra característica única dos psicodélicos, e que também incide nos perigos do uso recreativo, é a capacidade de provocarem um efeito conhecido como psicolítico: liberação de conteúdos reprimidos, traumas, motivações afetivas e reconhecimentos dos porquês da personalidade na forma de revivências e experiências de catarse.

Tais efeitos, que se sobrepõe terminantemente aos os efeitos fisiológicos – dilatação das pupilas, aumento da pressão sanguínea e efeitos eméticos variáveis (vômito) – decorrem de maneira segura sob o monitoramento científico ou na prática religiosa: universos onde o reconhecimento destas substâncias e o uso consciente e o conhecimento prévio são determinantes. Já no uso recreativo, iniciado nos anos 60 e definitivamente estabelecido com o nascimento da cultura da música eletrônica a partir das décadas de 80 e 90, eles decorrem de forma aleatória e ameaçadora: a ignorância, o uso abusivo e a total ausência de monitoramento podem transformar os efeitos profundos em altos riscos para a saúde mental. Torna-se fácil imaginar as decorrências negativas das alterações intensas e efeitos psicolíticos em um usuário recreativo que não possui nem mesmo idéia da natureza daquilo que ingere.



Estudos como o do psiquiatra norte-americano Sydney Cohen, em 1960, procuraram estabelecer porcentagens relativas a estes danos. Cohen contou com dados de 44 pesquisadores da época que investigavam substâncias como o LSD e a mescalina clinicamente, casos de administração que somavam aproximadamente 25.000 doses em 5.000 voluntários. Cohen concluiu que, sob condições médicas apropriadas e preferencialmente trabalhando-se com voluntários saudáveis (trabalhou-se bastante com pacientes psicóticos), a pesquisa psicodélica não oferecia risco. Em 69, o psiquiatra britânico Nicolas Malleson, apesar de porcentagens um pouco maiores, chegou a conclusões similares.

A forma com que estes danos se apresentam, no entanto, ainda representam mistérios científicos. A partir do momento em que estas drogas espalharam-se em grandes populações e a sua utilização recreativa foi amplamente advogada, no decorrer dos anos 60, surgiram relatos sobre psicoses permanentes provocadas pela ingestão e até mesmo de suicídios desencadeados por este uso. A grande questão estabelecida nos laboratórios era: estas drogas provocam o despertar de estados psicóticos latentes e geneticamente herdados ou possuem a capacidade de gerar, por si próprias, estados psicóticos permanentes?

Estudos que procuravam quantizar estes danos, como os dos psiquiatras Sydney Cohen e Nicolas Malleson, no entanto, tornaram-se de extrema dificuldade a partir do final dos anos 60, quando os psicodélicos foram proibidos nos territórios mundiais e inclusive retirados, à força e de maneira arbitrária, das mãos da ciência. Estimou-se que um quarto dos americanos que haviam experimentado o LSD, por exemplo, sem monitoramento científico, experienciaram as conhecidas más viagens (bad trip): um evento preocupante no que diz respeito aos danos psicológicos severos desencadeados pelos psicodélicos.

A hipótese mais aceita no meio científico é a de que estes acalóides, ao provocar tais danos severos e a longo-prazo, na verdade, dão uma espécie de clique em quadros psicóticos pré-existentes, latentes e herdados. Mas enquanto a ciência não é capaz de responder com exatidão a certas perguntas e mesmo que procuremos agir com dissimulação, o uso recreativo e ilícito de drogas com o LSD, hoje, representam uma perigosa verdade social: se a violência de um proibicionismo sedimentado em um tabu generalizante não é capaz de lidar com a natureza complexa e com os riscos apresentados pelos psicodélicos, como diminuir tais danos?

As políticas de redução de danos tem tomado força nos últimos anos, mas também tem sofrido o ataque conservadorista que as consideram uma espécie de apologia. A questão é simples: ou reconhecemos que as políticas públicas de segurança não são capazes de sanar a problemática das drogas e que estas drogas precisam ser discutidas e compreendidas pela sociedade como um todo ou fingimos que tais drogas não existem e que os danos por elas provocados são meras manifestações do além.



A política meramente proibicionista presume-se total, mas acaba por mergulhar no reducionismo do universo das drogas: ela anula todas as demais implicações – saúde pública, história, religião e até mesmo a própria ciência – e procura estabelecê-las dentro de uma única problemática: a da segurança pública. Esta incompetência, ao contrário do que presumem as frentes conservadoras, pode ser positivamente transformada pela incorporação de políticas públicas de redução de danos: estas políticas estendem-se da disseminação da informação correta e sincera até o universo da educação, onde denunciam o completo despreparo das instituições em instruir a população, de maneira honesta, sobre os riscos reais das drogas e sobre a diferença abissal entre os grupos de psicoativos.

Neste contra-fluxo encontramos iniciativas como as da MAPS (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), que produz material anti-desinformação de alcance público e que segue diretrizes de políticas de redução de danos na questão das substâncias psicodélicas. Como um bom exemplo, temos o vídeo Lidando com Experiências Psicodélicas Difíceis, através do qual especialistas procuraram definir princípios gerais de como auxiliar alguém que está vivenciando uma má viagem (bad trip) e de como esta abordagem pode ser determinante para a diminuição de possíveis danos para o usuário. Como dito no próprio vídeo: psicodélicos são utilizados por variados motivos e por variados grupos sociais, você pode encontrar alguém próximo sob efeito de um psicodélico em alguma altura da vida.

A recreatividade no mundo dos psicodélicos oferece riscos muito distintos de outras famílias, como a dos estimulantes e a dos depressores, e há muito despreparo e falta de informação neste trato. É preciso que se discuta o uso, a natureza e os riscos destas drogas nos ambientes familiares, escolas e rodas de amigos, do contrário os danos irão continuar incidindo em um submundo que se passa debaixo dos nossos próprios narizes e sob os nossos olhos hermeticamente fechados.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Filmes & Vídeos // Lidando com Experiências Psicodélicas Difíceis (MAPS / Redução de Danos)

O vídeo a seguir, produzido pela MAPS (Associação Mutidisciplinar para Estudos com Psicodélicos), procura estabelecer princípios gerais de como prestar apoio e ajuda a alguém que está passando por uma experiência psicodélica difícil, a tão falada bad trip (má viagem): um dos eventos mais preocupantes no que diz respeito aos danos psicológicos severos no uso recreativo e ilícito de substâncias psicodélicas.

Apesar de a maioria destes químicos figurar como substâncias proibidas, é preciso reconhecermos que o seu uso acontece em variados lugares e por variados grupos de pessoas, principalmente pelos jovens. Este uso abusivo e inconsciente, que a incompetência de um proibicionismo violento e arbitrário não é capaz de sanar, incide em um submundo de riscos reais que nós, em função de um monolítico tabu, preferimos não enxergar.

Uma das mensagens mais importantes do vídeo diz respeito à maneira como o proposto ajudante acaba interferindo na experiência (bad trip): na maioria dos casos, este ajudante procura distrair a pessoa sob efeito do psicodélicos da sua experiência, que naturalmente inclui momentos de desconforto e desgate psicológico. Esta atitude, ao contrário do que se supõe, pode contribuir para o agravamento da situação. Portanto, o ideal é que se permita à pessoa explorar livremente, fornecendo segurança e companhia, inclusive estes momentos de desconforto, sem estimulá-la a fugir ou escapar das suas sensações. "Difícil" não é necessariamente "ruim".

A intensão da MAPS é divulgar informações que, imprescindivelmente, precisam alcançar diversos meios, principalmente a família e as escolas, altamente despreparadas para lidar com a complexidade das substâncias psicodélicas: um grupo de alcalóides impregnado por uma antiquíssima história de utilização pelo homem e que, nos últimos 50 anos, tornou-se o protagonista de uma série de eventos científicos, sócio-culturais e políticos.


sábado, 20 de junho de 2009

Matérias // A Expectativa Humana no Trato da Pesquisa Psicodélica

"As substâncias conhecidas como psicodélicas, vulgarmente referidas como alucinógenas, representam um grupo de fármacos sem precedentes na história: tais químicos foram capazes de desempenhar um papel científico e sócio-cultural de alcance jamais antes observado em outro grupo. Protagonistas de momentos decisivos relacionados ao conhecimento e comportamento, que implicações esta família de estranhos alcalóides produziu e ainda produz na evolução da expectativa humana?"

// por Ciro MacCord

O conhecimento, nas mais variadas épocas da história, sempre assumiu a habilidade de orientar a expectativa humana na sua relação e compreensão de mundo. Tudo aquilo que é aceito e estabelecido como conhecimento – considerado como a interseção entre a crença e a verdade – transforma-se, automaticamente, numa espécie de bússola: define as direções a serem tomadas e através das quais o olhar investigativo irá lançar suas próximas investidas no imensurável universo do desconhecido.

Este universo, aparentemente infinito, representa não apenas os trilhões de quilômetros intergalácticos, mas também todo o profundo mistério que se estende por dentro do próprio homem: a mente. Desde o início da linguagem, cultura e civilização, o comportamento humano esteve decisivamente direcionado a iluminar e compreender a natureza das coisas e da existência. Com o passar dos anos, aquilo que primordialmente se apresentava como manchas difusas num imenso espaço de escuridão foi, aos poucos, tornando-se claro diante dos olhos da civilização e trouxe conforto para as mentes inquietas e curiosas, mesmo que não desse a mínima pista da existência de um fim ou ponto absoluto. A compreensão parece trazer uma espécie de legitimidade, um referencial através do qual o ser humano se sente mais seguro em ser ele mesmo.

Este processo, de uma busca obstinada pelo reconhecimento de tudo o que existe dentro e ao nosso redor, entretanto, nem sempre traçou um caminho de avanço. A definição de novos referenciais, ao mesmo tempo em que ilumina as sombras do desconhecido, oferece também o perigo da satisfação: se o reconhecimento de uma cadeira em um quarto escuro for o suficiente para trazer segurança, talvez se deixe de tentar reconhecer as outras partes, o que dirá sobre o que existe além do quarto. Assim tem acontecido com o conhecimento humano: a compreensão de certos pontos, antes obscuros, parece satisfazer completamente certas necessidades, e acaba por interromper o processo investigativo, sob a ilusão de que já se alcançou uma espécie de ponto final. Dentro deste panorama, podemos identificar, a grosso modo, dois personagens: o pioneiro – aquele que, insatisfeito, está sempre nas bordas do conhecimento afim de identificar tudo o que exista além deste limite – e o colonialista de idéias – aquele que, satisfeito com qualquer fagulha que o retire do estado de ignorância, torna-se suscetível ao medo irracional por tudo o que represente uma novidade.

É o embate entre estes dois personagens – saudável até determinado ponto – e o resultado deste conflito que, de fato, definem a expectativa humana no universo. A partir daí é que nascem os cânones e os paradigmas, e é também a partir daí que nasce a definição do tempo de vida destes mesmos cânones. A face devastadora deste processo, no entanto, mostra-se quando o equilíbrio alcançado pelo atrito entre pioneiros e colonialistas é fatalmente ameaçado pela prevalência de um dos lados, mais precisamente pelo lado dos colonialistas. Os pioneiros passam a enfrentar um contra-fluxo tão intenso que é capaz de silenciá-los: aqui eles são cegamente confundidos com loucos. O conhecimento tende a perder o dinamismo, e o avanço da compreensão humana é comprometido pelos mecanismos fundamentalistas que evitam a quebra e a reconstrução. Desta forma, as novas idéias são arbitrariamente descartadas (ver matéria: A Abordagem Capenga Sobre as Novas Ciências).

Muitas vezes, porém, em uma espécie de autodefesa, esta paralisação do conhecimento é revertida através de rupturas violentas e movimentos de massa. É como se o panorama das idéias humanas, ao tornar-se estático, atingisse um nível crítico onde uma espécie de insight coletivo leva grandes populações a questionar e, de fato, a lutar contra o rumo absolutista. Estes movimentos, na grande maioria das vezes e infelizmente, são patrocinados por uma boa dose de violência.

No meio deste processo, desta definição da expectativa através do conhecimento, encontramos a pesquisa psicodélica como um exemplo categórico: uma nova epistemologia, ao mesmo tempo em que ilumina as sombras do desconhecido, enfrenta o pânico daqueles que, satisfeitos com a rigidez cadavérica de seus paradigmas, tentam, desesperadamente, silenciar os novos conhecimentos. Esta pesquisa, delineada pela investigação de um complexo grupo de substâncias – os psicodélicos – procura estabelecer, desde a entrada destes químicos nos laboratórios em meados dos anos 40 e 50, implicações terapêuticas e buscas pela natureza do comportamento, mente e cérebro humanos.

Impulsionada pela descoberta do mais controverso psicodélico, o ácido lisérgico (LSD), em 1943 pelo químico suíço Albert Hoffmann, a pesquisa psicodélica estabeleceu-se, de forma definitiva, como uma vanguarda científica baseada em resultados positivos. Do final dos anos 40 ao início dos anos 70 estas substâncias foram incansavelmente estudadas, sob os mais diversos olhares e desencadearam o nascimento de uma perspectiva através da qual um horizonte completamente novo descortinou-se dentro dos laboratórios. As áreas mais drasticamente afetadas pela novidade dos psicodélicos – Psiquiatria e Psicologia – tornaram-se líderes de um movimento pela busca de respostas e reconhecimentos. E a relação humana com tais alcalóides – afinidade comprovadamente milenar que nos remonta às mais antigas manifestações xamânicas – fornecia um ânimo ainda maior frente à curiosidade científica.

O que causava tal fervor entre os cientistas e pesquisadores permanece, ainda hoje, como um emblemático fator: a natureza da experiência psicodélica. Surpreendentemente, e muito diferente da visão popular moderna, os efeitos destas substâncias jamais poderiam resumir-se no aspecto alucinatório (ver matéria: Afinal: Psicodélicos, Alucinógenos, Psicomiméticos, Enteógenos ou Psicodislépticos?): algum mecanismo faz com que tais alcalóides, ao penetrar os complexos emaranhados cerebrais, provoquem um estado incomum de percepção do próprio ser, da própria consciência e da maneira como ela está inserida no universo. Muito mais do que as visões caleidoscópicas e multi-coloridas, as profundas manifestações psíquicas e cognitivas desencadeadas denunciavam a existência de lacunas e indagações sobre a natureza humana.

Tais manifestações apresentavam-se de forma tão intensa que foram, em princípio, comparadas aos distúrbios de personalidade e psicoses em geral. Experiências de despersonalização, onde o paciente, por um determinado momento, simplesmente perdia a identidade consigo mesmo, com seu próprio corpo e ego, vivências de estados insólitos, em que se parecia extrapolar o universo comum da linguagem, personalidade e cognição, levaram muitos psiquiatras a considerar a experiência psicodélica como uma espécie de mimetismo de distúrbios psicopatológicos como a esquizofrenia.

A grande questão era que a própria loucura figurava (e figura até os dias de hoje) como um mistério: o que seriam, de fato, tais estados não usuais de interpretar o mundo? Desencadeados ou não por fatores orgânicos e biológicos, como categorizar a complexa natureza de maneiras estranhas e completamente distintas de perceber a realidade? A questão não residia na patologização das desordens mentais, mas sim na investigação da natureza destas desordens: que mundo é este onde um esquizofrênico existe? São estas realidades menos palpáveis e reais do que a realidade considerada como correta e absoluta? As drogas psicodélicas trouxeram todas essas questões à tona, uma vez que provocavam, sinteticamente, vivências extraordinárias de percepção.

Temas aparentemente não interligados, como desordens mentais, transes místicos e religiosos e drogas, de repente, reuniram-se através de novas implicações. Que estranho poder era este que capacitava tais substâncias a lançar vertiginosamente a consciência em mundos estranhos e irreconhecíveis? Indo além, que estranho poder era este que, a partir de uma fórmula química exata, provocava experiências tão subjetivas? Os psicodélicos representavam estranhas substâncias na medida em que, ao contrário do que se espera geralmente, não suscitavam efeitos objetivos e delimitados. Muito pelo contrário, os resultados eram sempre preenchidos por uma idiossincrasia jamais antes verificada sob o efeito de outros fármacos. E, para tornar ainda mais complexa a dinâmica, ainda provocavam um efeito conhecido como psicolítico: liberavam conteúdos pessoais reprimidos na forma de revivências e reconhecimentos da natureza da própria personalidade, como traumas, medos profundos, motivações e tramas afetivas.

Investigações sobre a consciência, pesquisas sobre as desordens mentais, psicoterapia auxiliada por psicodélicos, entre outros, foram alguns dos muitos direcionamentos tomados pela ciência em função do novo universo onde estas substâncias eram protagonistas. O poder destes alcalóides, no entanto, apresentou-se de forma tão intensa que não conseguiram suportar os limites científicos, e, a partir dos anos 60, escaparam dos laboratórios e disseminaram-se entre grandes populações, principalmente em território norte-americano. O processo de escape, porém, causou o desmoronamento da pesquisa psicodélica: a partir do momento em que drogas como o LSD tornaram-se propulsores da Contracultura através do propagandismo hippie de que expandiam a consciência, elas tornaram-se os alvos em primeiro instância das políticas públicas.

Assombrados pelas indagações de um movimento que questionava a hegemonia capitalista, os Estados Unidos, seu melhor representante, inauguraram um contra-ataque baseado em jogadas políticas violentas, patrocinadas por propagandas massivas e deformação de informação. É fato que o uso indiscriminado e inconsciente destas substâncias trouxe uma série de danos à saúde pública, na medida em que a experiência psicodélica, sem auxílio científico ou monitoramento, oferecia o risco de lesões psíquicas severas. O grande problema do consumo recreativo destes alcalóides não repousa na sua toxicidade, mas na imprevisibilidade dos efeitos psicológicos.

Baseado na utilização incansavelmente repetida deste fator e na propagação de falsas informações, como a de que o LSD provocava perigosas alterações no DNA, entre outras, o governo americano moldou a mais demoníaca das imagens para tais químicos. E, decididos a erradicar os psicodélicos da face da Terra, procuraram anular, arbitrariamente, todas as implicações terapêuticas legítimas e honestamente investigativas sobre os psicodélicos. Como resultado, o grupo de alcalóides que vinha desafiando a compreensão da ciência de maneira refinada foi violentamente lançado nas sombras de um silêncio devastador.

Durante aproximadamente 30 anos, que se iniciaram nos primeiros anos da década de 70, a política americana, disseminada internacionalmente, tratou de aniquilar a expectativa humana ligada ao novo e desconhecido universo denunciado por tais substâncias. O avanço do capitalismo e de uma epistemologia tecnocrata ainda contribuíram expressivamente para que esta expectativa – metafísica na maior parte da sua natureza – se tornasse uma espécie de devaneio ou misticismo para o qual não se devia prestar a mínima atenção. Durante estas três décadas o que se viu foi a condenação de uma nova abordagem nos moldes de uma reprovação colonialista em contraponto aos avanços pretendidos por pioneiros.

Hoje este panorama têm se transformado positivamente, e, mais uma vez, os psicodélicos têm adentrado os laboratórios da ciência de maneira elegante (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica): há um importante resgate que comprova, a cada dia, a existência de lacunas e a urgência por novas propostas. Uma série de frentes modernas tem devolvido escopo científico ao grupo de substâncias e ratificado o imenso potencial terapêutico e investigativo trazido por elas. Os pioneiros têm encontrado um caminho significativamente mais aberto para o desenvolvimento de um novo conhecimento capaz de clarear muitas das dúvidas e questões obscuras que ainda nos rondam.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

As Drogas // Psilocibina: o Sangue Azul dos Cogumelos


Por trás dos famosos cogumelos mágicos, tema recorrente sobre as tais viagens sem volta, existe uma intensa substância impregnada por uma rica história ancestral. Muito antes das psicodélicas histórias de Alice, onde uma simples mordida em um cogumelo era capaz de expandi-la a tamanhos imensuráveis, a psilocibina representava a divindade capaz de expandir não as medidas, mas a consciência através de realidades sagradas.

A psilocibina (O-fosforil-4-hidróxi-N,N-dimetiltriptamina) – alcalóide pertencente à família das triptaminas – é um poderoso composto psicodélico encontrado naturalmente em uma diversidade de espécies de cogumelo dos gêneros Psilocybe (ao qual pertence o antigo gênero Stropharia), Conocybe e Panaeolus (Copelandia), das quais o Psilocybe cubensis e o Psilocybe mexicana são as mais conhecidas. Estas espécies, muito distintos da imagem clichê do cogumelo vermelho com manchas brancas (Amanita muscaria, que será abordado no tema das drogas muscarina e escopolamina) são geralmente encontradas na América Central e México, mas podem também ser verificados em outras regiões do globo, principalmente nas localizações equatoriais e tropicais, visto que algumas espécies possuem comportamento cosmopolita.


O químico foi descoberto em 1953 por Gordon Wasson, um autor e pesquisador russo que desenvolveu uma série de contribuições para os campos da botânica e antropologia. A psilocibina é um psicodélico relativamente novo, em termos científicos, visto que a sua entrada nos laboratórios foi posterior à descoberta de outras substâncias como a mescalina, 60 anos antes, e do LSD, anterior em uma década. Cinco anos após a identificação por Wasson, Albert Hoffman, o famoso químico descobridor do LSD, foi o primeiro cientista a isolar o princípio ativo e a descrever sua estrutura molecular: o alcalóide de coloração azulada, na verdade eram dois deles e extremamente similares, foram batizados de Psilocibina e Psilocina, em alusão ao gênero Psilocybe: palavra de origem grega que significa cabeça (cybe) pelada (psilos). Os resultados, obtidos por Hoffman em colaboração com dois colegas (A. Brack e Dr. H. Kobel) e um professor (Roger Heim), foram publicados, em março de 1958, em nota no jornal científico Experientia. Os mecanismos de ação, em fato, devem-se a um princípio único, visto que a psilocibina converte-se em psilocina dentro do próprio corpo através de um processo chamado desfoforilação, mas os dois compostos são naturalmente encontrados nos cogumelos, sendo o primeiro deles verificado em maior porcentagem.

Posteriormente, em parceria com outros quatro colegas (A. J. Frey, H. Ott, T. Petrzilka e F. Troxler), Hoffman descobriu a síntese da psilocibina, cuja fórmula foi patenteada em 1963. Os resultados da pesquisa foram publicados em dezembro de 1958, também no jornal Experientia. A substância foi identificada como similar a outros químicos com o LSD, cujos intensos efeitos psíquicos denunciavam a urgência de novas frentes de pesquisa. A psilocibina entrou, decisivamente, para a família daqueles estranhos e misteriosos alcalóides que vinham desafiando a percepção sobre a natureza da mente humana. A partir da descoberta da sintetização, os laboratórios Sandoz, para o qual Hoffman trabalhava, passaram a disponibilizar a substância, assim como o LSD e outros psicodélicos, para as novas frentes de pesquisa que se disseminavam no início dos anos 60, principalmente norteados pelas vanguardas investigativas da Psiquiatria e Neurologia.

Em 1959, a psilocibina já se tornava a protagonista de uma série de estudos científicos, principalmente relativos à prática psicoterápica auxiliada por psicodélicos. Uma pesquisa francesa, liderada pelo médico Jean Delay, intitulada Les Effets Psychiques de la Psilocybine et les Perspectives Thérapeutiques (Os Efeitos Psíquicos da Psilocibina e as Perspectivas Terapêuticas), administrou a psilocibina em 13 pacientes saudáveis e em 30 pacientes diagnosticados com desordens mentais e concluiu que a substância, menos alucinógena que a mescalina e menos intensa que o LSD, possuía um significativo potencial enquanto ferramenta terapêutica. No mesmo ano, Delay, pioneiro na pesquisa sistemática da psilocibina nos domínios psiquiátricos, deu continuidade à investigação, publicando o artigo Premiers Essais de la Psilocybine en Psychiatrie (Primeiros Ensaios da Psilocibina na Psiquiatria), onde conclui que a substância, enquanto auxiliar psiquiátrico, é capaz de provocar melhor acessibilidade aos conteúdos do paciente, assim como desencadear efeito psicolítico, ou seja, liberar estes conteúdos na forma de revivências (geralmente da infância), estímulos da memória afetiva e eventos traumáticos.



No mesmo ano, o psiquiatra alemão F. Gnirss desenvolveu uma pesquisa intitulada Untersuchungen mit Psilocybin, einem Phantastikum aus dem Mexikanischen Rauschpilz Psilocybe mexicana (Estudos com psilocibina, um psicodélico do cogumelo Psilocybe mexicana), através da qual, ao administrar o alcalóide em um grupo de 18 pacientes saudáveis, conclui que o químico é um psicotrópico de teorética significativa e possibilidade de utilização psicoterapêutica.

Em 1960, outra pesquisa francesa, desenvolvida pelo psiquiatra A. M. Quétin, resultou em conclusões similares ao administrar o fármaco em um grupo de 32 pacientes saudáveis e 68 pacientes diagnosticados com quadros psicóticos. No mesmo ano, o psiquiatra R. Volmat, também francês e que já vinha desenvolvendo pesquisas sobre a estética produzida por pacientes portadores de distúrbios mentais, investigou a prática artística influenciada pela adição da psilocibina em 21 pintores amadores e profissionais. As conclusões mostraram que os artistas experienciaram “revelações” e novas propostas estéticas, através das quais a substância permitia ao pintor o “reconhecimento de um mundo visionário e colorido”.

Ainda em 1960, os psicólogos americanos Timothy Leary e Richard Alpert encabeçaram um projeto na Universidade de Harvard sob o nome de Harvard Psilocybin Research, do qual fizeram parte também o ensaísta filosófico e autor de Portas da Percepção – Aldous Huxley, o Presidente da Associação Psiquiátrica Americana – John Spiegel, o superior de Leary em Harvard – David McClelland, o psicólogo e professor da Universidade da Calofórnia – Frank Barron e dois estudantes graduados que já haviam trabalhado em um projeto à cerca da mescalina. Durante o programa, que durou de 60 a 62, uma série de experimentos foi desenvolvida para investigar as implicações da psilocibina sobre a natureza dos distúrbios psicóticos, tratamento de desordens de personalidade e psicoterapia auxiliada pelo uso do químico.

O desenvolvimento do programa, no entanto, foi significativamente prejudicado pela desenvoltura um tanto quanto anti-acadêmica de Timothy Leary. Desde o início do programa geral de pesquisa psicodélica em Harvard, o Harvard Psychedelic Drug Research Program, inaugurado em 1960 por 35 professores, instrutores e estudantes graduados, o psicólogo foi, aos poucos, se desfazendo da característica científica para tornar-se, anos mais tarde, uma espécie de guru da cultura psicodélica que vinha motorizando os fluxos intensos da Contracultura. Leary, extremamente fascinado pelas experiências de consciência desencadeadas por tais alcalóides, abandonou gradativamente a figura do pesquisador para investir-se da figura quase mística de um profeta do alucinógeno, que inclusive advogou o uso de drogas psicodélicas entre uma variedade de alunos sem monitoramento laboratorial ou intuito de pesquisa.

Até o momento drástico em que os psicodélicos escaparam dos laboratórios e tornaram-se os protagonistas de uma batalha política e, em função da política norte-americana da Guerra às Drogas, foram terminantemente proibidos, inclusive no universo científico, a psilocibina foi o centro de diversas investigações. Até o final dos anos 60 e início dos 70, quando os Estados Unidos responderam violentamente aos questionamentos da Contracultura, movimento do qual fazia parte expressiva a utilização destas drogas, os principais estudos concentravam-se em traçar paralelos entre as três principais substâncias do grupo – LSD, mescalina e psilocibina – e em examinar a potencialidade psicoterapêutica e possível relação entre os estados alterados de consciência provocados pela adição destes alcalóides e os distúrbios mentais. Com a medida que pôs fim às pesquisas, e através da qual o governo norte-americano arbitrariamente revogou toda e qualquer qualidade científica dos psicodélicos, a psilocibina foi, assim como os demais, silenciada, apenas voltando aos laboratórios após quase trinta anos de moratória.

Assim como a mescalina, apesar de uma recente e conturbada história ocidental e de representar uma novidade científica, a psilocibina nos remonta a eras antiqüíssimas e possui uma complexa carga histórica. Os primeiros registros datam de meados do séc. XVI, quando os historiadores da Nova Espanha fizeram os primeiros relatos da utilização sacramental dos cogumelos entre as populações nativas da atual região mexicana. Na famosa obra Historia General de las Cosas de Nueva España, onde o frade franciscano Bernardino Sahagún também reporta a utilização do cacto peiote pelas comunidades aborígenes, encontramos algumas das primeiras referências ao consumo ritual do cogumelo, identificado pela cultura local como teonanácatl, palavra de origem asteca-náhuatl cujo significado é “Carne de Deus”. A obra, fruto das observações de Sahagún desde a sua chegada na Nova Espanha em 1529 e finalizada no final do século, possui diversas passagens através das quais os cogumelos, assim como o peiote, ganham notoriedade enquanto elementos culturais nativos:

“Existem alguns cogumelos que dão nesta terra e se chamam teonanáctl, crescem debaixo do mato, nos campos e pântanos, são redondos e possuem a haste delgada. Quando comidos, possuem um sabor ruim, arranham a garganta e embreagam. São medicinais contra as queimaduras e gota. Deve-se comer dois ou três e não mais, e os que comem vêem visões e sentem palpitações no coração.”



A ingestão destes fungos representava um sistema complexo e legítimo de culturas e crenças, onde as alterações provocadas significavam o intermédio entre realidades distintas, relação através da qual se faziam previsões futuras, advinhações e curas, e através da qual se podia comunicar-se com os deuses. Os rituais expressavam-se não como elementos hedonistas, mas como fatores importantíssimos para a manutenção das comunidades, inclusive para a mobilidade dos seus membros dentro das hierarquias propostas, onde o curandeiro, figura que pode ser identificada como o xamã, possuía o conhecimento mágico que deveria comunicar e ensinar aos demais, e que lhe era passado pela própria substância, no caso, o cogumelo.

Além de Sahagún, três outros importantes personagens da conquista espanhola, o frade franciscano Toribio de Benavente (conhecido como frei Motolinia, nome dado pelos astecas), o frade dominicano Diego Durán e o pároco Jacinto de la Serna, também publicaram obras onde é possível encontrar relatos da utilização ritual dos cogumelos psicodélicos pelas comunidades locais. Motolinia, na obra Historia de los Indios de la Nueva España, escrita durante o séc. XVI e apenas publicada em 1858, talvez seja o primeiro a apropriar-se do termo asteca teotl (deus supremo) para referir-se aos cogumelos, que viria posteriormente a associar-se ao termo nanácatl (carne). Durán, em sua obra Historia de las Indias de Nueva España e Islas de la Tierra Firme, escrita no final do séc. XVI e publicada somente em 1867, e la Serna, em Manual de Ministros de Indios para el Conocimiento de sus Idolatrías y Extirpación de Ellas, obra de meados do séc. XVII, reportam o consumo do fungo como uma espécie de ritual de transubstanciação cristã, porém em moldes indígenas.

Todas as crônicas da Nova Espanha onde os cogumelos figuravam como parte da cultura aborígene, no entanto, bebiam, e imprescindivelmente, de fontes cristãs. A utilização ritual dos fungos foi rapidamente satanizada pelos relatos destes primeiros historiadores, onde o consumo de cogumelos era identificado como um culto demoníaco, em que o estado de “embriaguez” era provocado pelas forças do mal, e em que as previsões, visões coloridas, adivinhações e revelações eram concebidas pelo próprio Diabo. Tal costume, identificado como Idolatria (do fungo, da bebida, da planta etc.), uma prática que deveria ser “curada” pelos missionários, foi intensamente combatida pelos conquistadores, que contavam, inclusive, com uma gama de manuais que ensinavam-lhes como extirpar este tipo de comportamento e de como julgar as práticas indígenas segundo as diretrizes da Santa Inquisição.

A inabilidade da Igreja Católica Apostólica Romana em lidar com a riqueza intrínseca da vasta e múltipla natureza religiosa humana não só aniquilou todas as formas de expressão cultural e ritualística envolvendo o consumo dos cogumelos portadores de psilocibina, assim como destruiu definitivamente as manifestações nativa da Nova Espanha. Civilizações foram dizimadas e hoje, restam apenas raras e mal conservadas amostras remanescentes, entre elas algumas ligadas ao consumo ritual do cacto peiote (Igreja Nativa Americana).

Mas apesar das investidas da Conquista Espanhola nas terras da América Central e México, algumas expressões artísticas permaneceram enquanto elementos históricos e nos fornecem dados importantes à cerca da história do consumo da psilocibina. Os primeiros registros arqueológicos que envolvem a utilização ritual dos cogumelos psicodélicos nos remetem há aproximadamente mil anos a.C. e encontram-se na região da América Central. Em 1898, o geógrafo alemão Carl Sapper descreveu pela primeira vez um grupo de esculturas em forma de cogumelo, que se julgou em princípio serem representações fálicas, encontradas em El Salvador, Guatemala. Estas estátuas, a maioria de aproximadamente 30cm de altura, possuíam um chapéu grosso e abaloado e ainda faces humanas e outras representações esculpidas nos talos e foram identificadas como manifestações remanescentes da cultura Maia.



Tal descoberta chamou a atenção do autor e pesquisador russo Gordon Wasson e de sua esposa Valentina Pavlovna Wasson, que já vinham pesquisando as implicações culturais relativas aos cogumelos na Rússia. Os Wasson percorreram alguns territórios do México e América Central em 1953 e sugeriram – de maneira bastante convincente – que tais estátuas eram registros arqueológicos de antigas práticas ligadas ao consumo e à adoração dos cogumelos da psilocibina. Tais monumentos foram também estudados pelo arqueólogo Stephan F. Borhegyi, que acompanhou o casal Wasson durante sua viagem e atribuiu os cogumelos de pedra ao séc. X a.C, mais precisamente entre o séc. XIII a.C. e o séc. VIII d.C.

Além das esculturas, outro fato importante ligado á cultura ritual dos cogumelos havia ocorrido na mesma região pela qual os Wasson iniciaram o seu curso de investigação na América Central, aproximadamente 15 anos antes. Em 1938, o antropólogo mexicano Robert J. Weitlaner e o botânico estadunidense Richard Evans Schultes, da Universidade de Harvard, encontraram práticas religiosas remanescentes que utilizavam cogumelos psicodélicos na cidade de Huautla de Jimenez, capital do território Mazatec, no Estado de Oaxaca. Neste mesmo ano, um grupo de antropólogos americanos pôde assistir, pela primeira vez, um ritual secreto do cogumelo, sob a liderança de Jean Bassett Johnson, que havia seguido as orientações e Witlaner. A experiência foi publicada no ano seguinte.

Quinze anos depois, os Wasson, talvez as mais importantes personalidades no que diz respeito ao conhecimento moderno sobre estes cogumelos, percorrerem diversas cidades e locais onde haviam indícios e registros da cultura ligada ao fungo e depararam-se com manifestações atuais provenientes da cultura asteca, entretanto já carregada pelo sincretismo religioso que substituía as figuras nativas por figuras cristãs. O casal, além das já citadas esculturas, ainda deparou-se com uma série de referências sagrados aos cogumelos nos afrescos de Teotihuacan, sítio arqueológico localizado a 40 km da Cidade do México, onde as figurações murais denotavam divindades portando cogumelos nas mãos, o ato do consumo e uma série de figuras que podem ser interpretadas como alusões ao fungo. Gordon e Valentina puderam reunir uma vasta documentação dedicada ao tema, além de recolher espécies, através das quais descobriram, enfim, a existência de uma substância ativa que provocava os estados alterados de consciência: a partir daí a psilocibina foi trazida aos laboratórios científicos, onde foi isolada, nomeada e sintetizada pela primeira vez.

De 1953 ao final dos anos 60 a substância foi o centro de diversas pesquisas, já citadas anteriormente, até cair no silêncio sufocante imposto pela política norte-americana da Guerra às Drogas. Aproximadamente após três décadas de um período marcado pela moratória científica arbitrariamente fixada, os psicodélicos iniciaram um expressivo movimento de retorno aos domínios científicos (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica).

A partir deste momento e até os dias de hoje, a psilocibina tornou-se novamente o centro de diversos estudos. Em 2004, o psiquiatra norte-americano Charles Grob, da Universidade da Califórnia, desenvolveu uma pesquisa que investigou o químico enquanto fator terapêutico em pacientes com câncer em estado terminal em 12 pacientes. O estudo, que procurava a redução do estresse e dor, obteve resultados animadores no aumento da qualidade de vida dos pacientes e os dados revelaram um aspecto promissor na utilização clínica da substância.

Em 2006, o psiquiatra Francisco Moreno, da Universidade do Arizona, iniciou uma pesquisa sobre o uso terapêutico da substância em pacientes diagnosticados com distúrbio obsessivo-compulsivo que resistiram a outros tipos de tratamento, assim como para fins de teste de segurança do alcalóide no organismo. As conclusões reportaram que todos os pacientes, da amostra de 9, experienciaram melhorias nos quadros obsessivos compulsivos durante o período da experiência. Apesar uma pequena pesquisa, com uma amostra e um alcance não tão significativos, Moreno reportou seu ânimo diante da potencialidade da substância: “O que vimos foi uma drástica diminuição dos sintomas durante um período de tempo. As pessoas diziam que não se sentiam tão bem há anos”.



Em outro estudo, do mesmo ano, liderado pelo neurocientista americano Roland Griffiths, da Faculdade de Medicina da Faculdade Johns Hopkins, foram administradas doses de mescalina a 36 pacientes saudáveis a fim de se investigar os mecanismos da experiência psicodélica que afetam a percepção e cognição. Cerca de dois terços dos voluntários relatou haver vivenciado uma completa experiência mística, caracterizada por uma sensação de unidade com todo o universo. Quatorze meses após a administração das doses, Griffiths os entrevistou novamente: os pacientes ainda atribuíam à experiência altos níveis de satisfação transcendental e a associaram ao crescente bem-estar que sentiam desde então, inclusive relatado pelos familiares e pessoas próximas. “A maioria dos voluntários conseguia se lembrar de suas experiências 14 meses depois e as classificavam como uma das cinco experiências espirituais mais significativas já vividas, comparando-as com o nascimento de um filho ou a morte do pai ou da mãe. É fantástico passar por uma experiência assim tão marcante. Mais fantástico ainda é ela ainda ser significativa 14 meses depois. Experiências como essas são inesquecíveis”, afirma Griffiths.

Ainda em 2006, temos a pesquisa do psiquiatra norte-americano John Halpern, da Universidade de Harvard, que investigou os efeitos terapêuticos da psilocibina e do LSD em pacientes diagnosticados com uma enxaqueca intensa conhecida como enxaqueca em salvas. 22 dos 26 pacientes em que foi administrada psilocibina e 25 dos 48 em que foi administrado LSD reportaram diminuição dos ataques e alguns até mesmo a remissão por períodos extensos.

Em 2008, os médicos e pesquisadores Juan Sanchez-Ramos e Briony Catlow, da Universidade da Flórida do Sul, iniciaram uma pesquisa afim de investigar a possibilidade de a psilocibina auxiliar o processo de nascimento e desenvolvimento de novas células cerebrais (neurogênese) na área conhecida como hipocampo, responsável pela cognição e memória. O estudo, corrente, ainda não possui publicação.

As modernas frentes de pesquisa nos têm mostrado, com dados promissores, que os psicodélicos possuem uma potencialidade ainda pouco conhecida pelos cientistas e que jamais deveriam ter sido condenados a uma moratória durante longas décadas. Os novos estudos têm inspirado um honesto retorno de alcalóides como a psilocibina aos domínios da ciência e desmentindo a demoníaca imagem pintada pelas jogatinas políticas norte-americanas nos anos 60.


// EFEITOS E RISCOS:

De um modo geral, os efeitos decorrentes do consumo da psilocibina iniciam-se aproximadamente entre 30 a 60 minutos após a ingestão (cogumelos frescos, desidratados ou infusão), e de aproximadamente 15 minutos quando administrada por via intra-venal.

A dose ativa da substância é de aproximadamente 15mg e dura, geralmente, de 4 a 8 horas, tendo o seu pico aproximado cerca de 1 ou 2 horas após o consumo.

Os efeitos psíquicos, assim como para os demais psicodélicos, variam de acordo com o ambiente (condição externa) e o estado de espírito e personalidade (condição interna) do usuário e as experiências ruins e potencialmente danosas são mais freqüentemente observadas entre os usuários recreacionais (ilícitos). Os efeitos, apesar de menos intensos que os provocados pelos outros dois alcalóides expoentes do grupo – LSD e mescalina – são similares aos dos pertencentes à família dos psicodélicos: alterações na percepção visual que podem incluir visões caleidoscópicas e hiper-coloridas; sensibilização sensorial; experiências de despersonalização onde o indivíduo perde a identidade com seu próprio corpo e com os limites do próprio corpo; alteração da noção temporal e espacial; sensação de plenitude consciencial, de unicidade com o universo (cosmovisão); sensações tanto de paz suprema quanto de intenso terror que pode levar a quadros de pânico (má viagem, bad trip); taquipsiquismo (pensamento rápido); pensamento confuso e desordenado; perda do controle emocional etc.



Apesar de podermos delinear um certo universo de efeitos, a definição dos mesmos torna-se essencialmente dificultada devido a natureza subjetiva e idiossincrásica da experiência psicodélica.

Já os efeitos fisiológicos incluem alterações variáveis como o aumento da pressão sanguínea, taquicardia, midríase (dilatação da pupila) e atividades eméticas (vômito).

A psilocibina não é capaz de desenvolver relação de vício com o usuário e não possui toxicidade cerebral suficiente para acarretar problemas, distúrbios ou danos neurológicos. O grande problema encontrado no uso das substâncias psicodélicas não recai em seus mecanismos fisiológicos, mas sim nos efeitos imprevisíveis que esta adição pode causar no indivíduo psiquicamente (principalmente quando utilizada com fins recreativos).

Os cogumelos são conhecidos pelas famosas “viagens sem volta”, mas não há nada nestes fungos que os coloque em maior posição de risco frente a outros psicodélicos, como o LSD. As tais “viagens sem volta”, em fato, são baseadas em desencadeamentos de crises psicóticas severas e prolongadas em pessoas que já possuem histórico ou propensão genética a este tipo de comportamento, e sob a utilização de qualquer psicodélico.


// MECANISMO DE AÇÃO:

Os mecanismo de ação de substâncias como a psilocibina, assim com os de outros químicos deste grupo, apresentam, ainda hoje, uma série de lacunas preenchidas apenas por teorias. Os últimos estudos têm encontrado diversos indícios da natureza química interativa no cérebro humano.

Sabe-se que a psilocibina possui estrutura semelhante aos neurotransmissores cerebrais dopamina, noradrenalina e especialmente a serotonina. Em função de tal afinidade, a molécula liga-se aos mesmo locais (receptores) em que estas substâncias se conectam, onde passam a desenvolver a função de neurotransmissores, neste caso, de origem externa. Os neurocientistas acreditam que a ativação de determinados grupos destes receptores é o mecanismo responsável pelas alterações perceptivas e cognitivas produzidas pela adição destes químicos.


// STATUS POLÍTICO ATUAL:

A psilocibina e psilocina são consideradas drogas ilícitas pelas Nações Unidades, através da Convenção de Substâncias Psicotrópicas, de 1971. Incoerentemente elas pertencem às drogas da escala 1, a mais perigosa e escala da qual fazem parte substâncias cujo uso terapêutico ou medicinal é nulo. Esta convenção foi adotada pela maioria esmagadora dos países no globo, e não há qualquer federação onde a substância não seja ilegal.

A produção e cultivo dos cogumelos produtores de psilocibina, assim como a sintetização, produção, comercialização e consumo da psilocibina ou psilocina são proibidos sob pena de se fazer valer as medidas constitucionais cabíveis em cada federação.

Assim como para outros psicodélicos ilícitos, existe uma população que faz uso recreativo da psilocibina. A dificuldade de encontrar os cogumelos e da até então inexistência de laboratórios clandestinos capazes de sintetizar o alcalóide, tornam o uso recreativo desta substância dificultado.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Produção // UltrAlice: Primeiros Conceitos


O País das Maravilhas – terra de sonhos multicoloridos e delírios sem pé nem cabeça vividos pela pequena Alice – poderia, facilmente, comparar-se a uma frenética odisséia alucinógena. Mas o que existe por trás do consumo de psicodélicos, vulgarmente conhecidos como alucinógenos, além de um jogo recreativo e nonsense de visões escalafobéticas e fuga da realidade? A relação do homem com estas substâncias, ao contrário do que geralmente se supõe, representa um envolvimento intricado e milenar, e esconde, sob o véu contemporâneo de um tabu cristalizado, uma complexidade entrelaçada pelas mais diversas cargas da história humana: da religião aos laboratórios da ciência moderna.

Apesar de tão antiga relação, que nos remonta a eras pré-cristãs e às primeiras formas de xamanismo, a história ocidental dos psicodélicos é extremamente recente, e não menos conturbada. Foi através da descoberta dos efeitos de um misterioso composto, o ácido lisérgico, conhecido como LSD, em 1943, pelo químico suíço Albert Hoffman, que este grupo de alcalóides alcançou, vertiginosamente, status científico. Substâncias como a mescalina, oriunda de algumas espécies de cactos, e a psilocibina, proveniente de alguns tipos de cogumelo, provocaram um fervor nos laboratórios através do qual a ciência lançou uma refinada e curiosa investigação sobre os alucinógenos.

Tais experimentos e linhas de pesquisa descortinaram um novo horizonte à cerca do comportamento e consciência humana. Os psicodélicos continham propriedades até então nunca encontradas em outro grupo de fármacos e desencadeavam um novíssimo olhar sobre a psique e a percepção. Áreas como a Psiquiatria, Psicologia e Neurologia armaram-se com os agitados motores de uma vanguarda científica responsável por uma fatia significativa da pesquisa dos anos 50 e 60.


No final da década de 60, no entanto, estes alcalóides escaparam das mãos da ciência e, infelizmente, disseminaram-se entre grandes populações de jovens e tornaram-se agentes polinizadores da Contracultura. O governo norte-americano, assombrado pelos questionamentos de um movimento que protestava contra a hegemonia capitalista, sumamente representada pelos Estados Unidos, investiu em um violento contra-ataque, de proporções mundiais, conhecido como War on Drugs (Guerra às Drogas). Esta iniciativa, difundida por todo o planeta através de políticas massivas e publicidade extremista, aboliram inclusive, e de forma definitiva, todas as pesquisas e investigações, mergulhando os psicodélicos em um penoso silêncio científico que perdurou aproximadamente por três décadas. A despeito de todas as potencialidades terapêuticas e de uma nova epistemologia capaz de expandir o olhar da ciência sobre a mente humana, os psicodélicos foram, pouco a pouco e arbitrariamente, demonizados pelos programas políticos e, finalmente, reduzidos a um hegemônico tabu, impassível a novos questionamentos.

Estas substâncias, principalmente o LSD, no contra-fluxo das medidas extremas norte-americanas, estabeleceram-se, categoricamente, como drogas recreativas até os dias atuais, principalmente após a recente história da música eletrônica. Elas assumem, hoje, um expressivo papel nos mecanismos do narcotráfico e na problemática da segurança e da saúde públicas, onde figuram como drogas de abuso e uso inconsciente. O despreparo das instituições de ensino para lidar com honestidade e informação sobre o assunto – herança de um tabu silencioso e devastador – apenas contribui para que estes fatores incidam em um submundo que não queremos e não pretendemos enxergar. Os Estados Unidos, ironicamente, possuem a maior população relativa usuária de drogas ilícitas no mundo.

Hoje, felizmente, estes químicos têm voltado aos domínios da ciência, e, mais uma vez, demonstrado o seu imenso potencial enquanto ferramentas de investigação e cura. Uma diversidade de novas frentes atuais tem desenvolvido pesquisas sérias e honestas que evidenciam e assumem um complexo universo escondido por trás de esdrúxulas e perturbadoras moléculas – ainda longe de serem completamente desvendadas. Estas novas pesquisas evidenciam uma importante maturidade científica em relação aos jogos políticos arbitrários iniciados nos anos 60, e parecem equipar-se de um franco interesse em lançar luzes fulgurantes sobre os mistérios da consciência e natureza humanas.


O UltrAlice, muito distante do discurso apológico, apóia-se na idéia da informação sincera como poderosa ferramenta de divulgação de idéias e conhecimentos, além de arma imprescindível contra o uso abusivo e inconsciente destas substâncias. O projeto manifesta sua crítica ao atual panorama sócio-cultural e político sobre os psicodélicos, representado pela força esmagadora de um proibicionismo cego e incapaz de analisar e investigar aquilo que proíbe e por um monolítico tabu cadavericamente fundamentado. As drogas psicodélicas precisam ser discutidas e analisadas, precisam existir nos debates, nas salas de aula e, acima de tudo, tratadas de acordo com a sua real complexidade: política, histórica, sócio-cultural, religiosa, filosófica, estética e científica.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Matérias // A Abordagem Capenga Sobre as Novas Ciências

O universo científico, assentado em sua indispensável capacidade de refinamento e evolução lingüística, tem suplantado idéias antigas como charlatanismo ou misticismo por valores descritivos de ponta como pseudociência. Este moderno termo, já tremendamente surrado, parece equipar as autoridades do conhecimento humano para discernir sobre o que deve ou não ser lançado ao fogo mortal da nulidade. Em um mundo de informações esmagadoras e nebulosas, entretanto, o abalizamento destes valores parece misturar-se nos vestígios de uma pronunciada inquisição científica.

// por Ciro MacCord

Se há 500 anos as vultosas imagens do Cristianismo e as exacerbadas orações obnubilavam a liberdade crítica individual, transbordando das igrejas a todo gás, certamente, hoje, é dos laboratórios da ciência que a divindade contemporânea emerge. Tal divindade – despojada de cruzes, santos ou pecados – transborda pelas escotilhas da moderna noção de que o status intelectual humano ideal é aquele baseado em fatos incontestáveis. A linguagem pomposa, atamancada no latim, persiste de alguma forma, e o Sagrado Coração de Jesus parece ter trocado de nome: Método Científico.

Não que a ciência, por si só, esteja, através de novas roupagens, exorcizando o desconhecido na excêntrica forma de demônios ou cobrando fé das ovelhas desgarradas à maneira do bom pastor. A atitude do homem, com a definição da expectativa humana por meio do estabelecimento de cânones monolíticos e cadaverizados, é que parece, paradoxalmente, ir de encontro à dinâmica noção da ciência.

Olhando para trás no tempo, até os primeiros momentos em que a consciência crítica e apta à formação de cultura gerou suas faíscas iniciais em nossos antepassados, nos parece tola, por tão óbvia, a noção de como o conhecimento se transfigurou até os dias de hoje. De seres vivos que esboçavam seus primitivos ensaios da linguagem a uma civilização global regida pela mais alta e complexa comunicação, o homem tem demonstrado um caráter intrínseco da sua natureza: a transformação. A cultura humana é lapidada, contestada, destruída e reconstruída seguidamente, num ritmo interminável – e a ciência não foge à regra.

Em face desta natureza, digamos, metamorfósica, pareceria no mínimo contraditória a idéia de que pontos de resolução final, portanto fatos incontestáveis, devam delinear a conduta humana no seu relacionamento e percepção de mundo. Os cânones devem, claro, ser formados, as teorias devem ser desenvolvidas, os paradigmas devem ser esculpidos, mas a ciência que de fato merece o título é aquela capaz de aceitar a possibilidade da sua própria supressão.

A grande falha no tratar da ciência moderna – e problemática onde encaixa-se também a questão da pesquisa sobre drogas psicodélicas – é a inabilidade em assumir o caráter transitório do conhecimento humano. E hoje, frente a uma realidade embebida em tão vasta quantidade de informações, as articulações da ciência em função desta incompetência podem assumir dimensões devastadoras. A partir do momento em que o cânone científico deixa de comportar-se como tal e investe-se da imagem de uma espécie de pilar absoluto – indiferente ao tempo e às novidades – a ciência então assume caráter divino: há um deus que, do alto do seu escalão celestial, estipula as regras para os seus domínios, abaixo, e jamais irá descer para ser contestado.

Esta falha, incompatível com a dinâmica natural da cultura, tem se apoiado na própria autoridade científica como defesa às rupturas e expansões do conhecimento. E, pior, tem produzido mecanismos despóticos para o seu auto-reconhecimento. Noções extremamente difundidas, principalmente em comunidades céticas, como misticismo, esoterismo e pseudociência estão tornando-se idéias praticamente auto-valorizadas, que independem de uma real análise para serem fixadas, como etiquetas, em tal ou tal conjunto de idéias ou teorias sobre a natureza e o funcionamento das coisas.

Tudo o que parece extrapolar os frios limites pré-fundamentados e ortodoxamente delimitados pelos paradigmas em voga é, sem o imperativo da real investigação crítica e da flexibilização, impelido e lançado no submundo das fantasias, do misticismo e do primitivismo humano. E, mais aberrante, é o fato de até mesmo novas frentes e teorias filosóficas – que, em princípio, são responsáveis pela atenção, análise e reconfiguração dos alcances do conhecimento – serem, também, aniquiladas pelo poder auto-concebido à ciência.

A equivocada noção, a cada dia mais reforçada, de que o que é metafísico não pertence aos domínios científicos contribui ativamente para a constituição de um universo glacialmente hiper-mecânico, onde noções como a consciência, o comportamento e a experiência subjetiva tornam-se meros e pálidos enfeites da história e evolução do homem.

A Psicologia é basicamente uma ciência metafísica, lida com o comportamento e as suas mais invisíveis e impalpáveis – no entanto realíssimas – nuances. A Medicina Psiquiátrica, apesar de ainda dever analisar o ser humano enquanto suporte físico, também está calcada na análise do conteúdo subjetivo. Antropologia, Ecologia, Direito, Pedagogia, Neurociência Cognitiva e uma série de outras frentes ainda lidam com valores não mecânicos da realidade. Deveriam estas ciências ser condenadas ao mundo da imaginação e do misticismo?



Novas propostas, como as que investigam a natureza da consciência humana – o maior de todos os mistérios científicos – têm sido analisadas sob a luz de uma visão tacanha, como simples figurinhas dispensáveis para o sagrado álbum do conhecimento de ponta. Parece existir um momento onde o domínio científico, tremendamente amedrontado pela visão do que está além, nega-se a expandir-se, assombrado pela possibilidade da sua transformação. Neste panorama, o complexo tema dos estados alterados de consciência pode figurar como um bom exemplo desta dinâmica.

Até a entrada estrondosa das substâncias psicodélicas (vulgarmente conhecidas como alucinógenos) nos laboratórios científicos, a partir do final da década de 40, tais estados, desencadeados ou não pelo consumo de drogas, estavam condenados à natureza da imaginação primitiva ou das patologias. Êxtases xamânicos, estados meditativos, experiências místicas religiosas, entre outros, poderiam, de maneira simples, serem definidos como quadros psicóticos ou arbitrariamente descartados para o universo mítico.

Os mais diversos estudos clínicos com psicodélicos, desenvolvidos em grande número nas décadas de 50 e 60, desencadearam, entretanto, um novo olhar sobre a consciência. Estes estados, experimentados pelos próprios cientistas, continham uma semântica lógica, um mecanismo que muito se diferia de um pacote de transformações aleatórias das percepções. As profundas alterações cognitivas e psíquicas, constantes experiências de despersonalização (perda da noção do ego, sem, no entanto, perder a consciência) e vivências de natureza ontológica (relativas à natureza do ser), muito mais do que os shows pirotécnicos e multicoloridos das ilusões também patrocinados por estas substâncias, causaram um tremor nos laboratórios.

Os estados alterados da consciência, quando trazidos ao domínio da ciência através de um grupo de moléculas praticamente desconhecidas, produziram a emergência de uma nova abordagem sobre o ser humano. E, a partir deste momento, este tipo de ocorrência, espontâneo ou provocado, passou a ser observado sob uma visão muito mais refinada. As manifestações arcaicas, como o xamanismo, até então meros souvenirs mal-conservados da cultura humana, vieram à tona.



O escape destas drogas dos meios científicos, no entanto, foi a ruína da pesquisa psicodélica. Substâncias como o LSD disseminaram-se rapidamente, principalmente entre os jovens norte-americanos, e tornaram-se motores de auxílio à Contracultura. O governo estadunidense, na tentativa de frear os avanços de um movimento que vinha questionando a hegemonia capitalista da qual os Estados Unidos eram o melhor representante, iniciou uma verdadeira guerra. E a War on Drugs (Guerra às Drogas) culminou, inclusive, com a abolição de toda e qualquer pesquisa científica que envolvesse alcalóides psicodélicos. As frentes de investigação, fascinadas pelas novas observações e potencialidades terapêuticas (principalmente em Psiquiatria e Psicologia), foram caladas.

Hoje, felizmente, estas drogas têm retornado ao escopo científico (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica), no entanto, ainda não foram capazes de resgatar a investigação da consciência como anteriormente, principalmente pelo fato de que esta pesquisa, em específico, ter sido a mais destroçada e desprovida de crédito em função do propagandismo hippie de que drogas como o LSD expandiam a mente.

Os estados alterados de consciência, infelizmente, retornaram a figurar, porém com bem menos intensidade, como meras expressões do misticismo. Muitos relatos e análises científicas sobre os psicodélicos, que constituem uma significativa fatia da produção científica dos anos 50 e 60, apesar do retorno da pesquisa, foram notavelmente desvalorizados em função do seu caráter metafísico em oposição ao reducionismo materialista do atual establishment científico. A desconsideração da riqueza experiencial percebida pelos cientistas, inclusive reportada sob os moldes da pesquisa clínica, denunciam a inegável inaptidão da ciência moderna em lidar com transições e novas justificações do conhecimento.

Eventos como este demonstram a inadiável emergência por questionamentos práticos sobre a ética da ciência moderna. E enquanto a Filosofia não for capaz de reassumir o seu papel analisador e modificador das implicações e limites científicos, o conhecimento humano talvez continue traçando uma penosa direção de retrocesso investigativo e abordagens capengas de novos valores.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Matérias // Um Resgate da Pesquisa Psicodélica Brasileira



Nomes internacionais e mundialmente reconhecidos como Albert Hoffmann, Stanislav Grof, Rick Strassman e Terence McKenna automaticamente nos remetem à contemporânea epistemologia das substâncias psicodélicas. A pesquisa científica nacional, no entanto, também contou, na década de 60, com frentes investigativas afins, que, infelizmente, parecem ter se apagado no tempo e ainda não foram capazes de provocar o retorno destas drogas aos laboratórios da modernidade
em território brasileiro.

// por Ciro MacCord

Durante a primeira grande onda de pesquisas sistemáticas sobre psicodélicos, a partir do final dos anos 40, compostos como o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), a psilocibina (oriunda de algumas espécies de cogumelo) e a mescalina (encontrado em espécies de cacto como o peiote) representaram o descortinar de um novo cenário científico, principalmente para as áreas da Psiquiatria, Psicologia e Neurologia.

O fervor destas novidades atingiu diversos países onde uma série de pesquisadores aderiu à vanguarda científica em formação, e o Brasil foi um deles, embora muito timidamente. É difícil, no entanto, demarcar um ponto exato em que a pesquisa nacional se interou e começou a participar de tais estudos. Muito deste problema ocorre em função da inexistência de um banco de dados acessível onde as publicações destas pesquisas estejam catalogadas (tão pouco digitalizadas). Muitas referências, infelizmente, se perderam – tornando extremamente difícil a sua exploração.

Como provável cientista brasileiro pioneiro no trato das drogas psicodélicas, encontramos o psiquiatra Eustachio Portella Nunes, da Divisão de Pesquisa do Instituto Psiquiátrico da Universidade do Brasil, atual UFRJ. Portella Nunes desenvolveu, em 1955, uma investigação sobre a dietilamida do ácido lisérgico (LSD-25) a fim de determinar se a substância continha qualquer grau de especificidade quanto à natureza das psicoses. Para os testes clínicos, o psiquiatra administrou o fármaco em oito pacientes com diagnósticos psicóticos: 3 casos de esquizofrenia hebefrênica (caracterizada por intensos distúrbios alucinatórios, idéias delirantes e perturbação afetiva), 2 casos de esquizofrenia catatônica (caracterizada por distúrbios psicomotores e dificuldade de fala), 2 casos de transtorno bipolar (maníaco-depressivo) e 1 caso de delirium tremens (psicose associada à abstinência de drogas ou medicamentos).

O LSD-25, enviado pelos laboratórios Sandoz – onde o composto vinha sendo pesquisado desde a sua descoberta, em 1943 – foi aplicado por via intramuscular em testes com intervalos de uma semana entre as doses para cada paciente, e, para evitar efeitos sugestivos, foram administrados placebos (água destilada) nas primeiras avaliações. As observações dos casos e efeitos foram reportadas no Jornal Brasileiro de Psiquiatria, através do artigo Investigações com a Dietilamida do Ácido Lisérgico, em 1955, onde Portella Nunes traçou uma análise dos resultados assim como delineou um breve resumo das pesquisas com LSD e mescalina desenvolvidas na época. Os seguintes trechos pertencem ao artigo:

(Descrição de caso) CASO I - M.A.S., leptossomática, 20 anos, remissão de quadro hebefrênico. 20 minutos após a aplicação de 60 microgramas de LSD começou a exibir variação rápida de humor, além de estranheza do mundo da percepção. Em momentos mostrava-se perplexa e nos inquiria sobre se não voltaria a existir como dantes, a tomar banhos, trocar de roupa, fazer as obrigações diárias. Julgava-se diferente, estranha, esquisita. Sentia dificuldade em verbalizar o pensamento na qual certas palavras e alguns temas perseveraram sem que se alcançasse o pleno sentido do que pretendia dizer. [...] Rapidamente variava de um humor angustioso e perplexo em que se mantinha a maior parte do tempo, para um riso que não parecia traduzir alegria e sim admiração ante o estranho. [...] A expressão é sempre difícil, as frases não alcançam sentido completo, palavras são repetidas numerosas vezes; reiteradamente voltam os mesmos temas [...]"

"(Descrição de caso) CASO 3 - A.D.B., atlético, 28 anos, remissão de quadro hebefrênico. Com LSD na dose de 70 microgramas. Decorridos 15 minutos da aplicação, refere sensação de leveza do corpo; recordação de cenas do passado em imagens rápidas, mas vivas e coloridas, ditas, pelo enfermo mesmo, como caleidoscópicas; sensação de bem-estar apesar da estranheza do mundo da percepção; por vezes, bloqueios do pensamento; inquietação motora, estado de consciência oscilante, com perplexidade.[...]"

"(Descrição de caso) CASO 5 - L.C., picnica, 16 anos, em remissão de psicose maníaco-depressiva - fase maníaca. Passados 20 minutos da injeção de 60 microgramas de LSD, sensação de frio e tremos das extremidades; salivação abundante e espumosa; diplopias; micropsias; sensação de estranheza do mundo da percepção; sentimento de encontrar-se em estado anômalo, absolutamente estranho e diverso de tudo quanto sentira antes; risos que a doente dizia não resultarem de sua vontade; clareza de consciência. [...]"

"(Conclusão) A dietilamida do ácido lisérgico faz reaparecer os quadros esquizofrênicos (excetuado o caso 5) aproximadamente com as mesmas características anteriores. [...] A LSD revelou certa polaridade esquizógena, pondo em marcha processos esquizofrênicos e condicionando sintomatologia esquizofreniforme mesmo em paciente que apresentara antes quadro maníaco."

"(Comentário) Este trabalho apresenta um aspecto interessante da LSD. A casuística, entretanto, é demasiadamente reduzida para permitir conclusões significativas. Isto é apenas uma preliminar e o autor vai continuar com suas observações."

Apenas depois de 6 anos encontramos um registro seqüente ao tema. O psiquiatra Paulo Luiz Vianna Guedes – patrono da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina – desenvolveu uma pesquisa clínica com seres humanos utilizando o LSD, cujo resultado foi publicado em 1961. Na investigação, intitulada Experiências com a Dietilamida do Ácido Lisérigico (LSD-25), o psiquiatra faz uma detalhada análise das possíveis vantagens psicoterápica oferecidas pelo LSD através de cinco aplicações do químico em um grupo de três pacientes: um caso grave de neurose histérica, um caso de esquizofrenia paranóide e um caso de neurose com caráter histérico.

Assim como Portella Nunes, Guedes recebeu o fármaco dos laboratórios Sandoz, entretanto, na forma de tabletes para consumo oral, cada um contendo 25 microgramas (milésimos de grama) da substância. O psiquiatra pôde observar uma série de efeitos nos pacientes que o levaram a confirmar o potencial do LSD como ferramenta de auxílio na prática psicoterápica. Entre as análises reportadas na publicação, podemos encontrar os seguintes trechos:

"(Descrição de caso) Modificações do esquema corporal – A negação de partes do corpo (não ter braços, não ter mãos), ou do corpo todo ("eu não existo") foi assinalada algumas vezes, bem como a sensação de estar diminuindo de tamanho e de se tornar "muito pequeno", "uma criança", conforme expressão dos pacientes. Um paciente perdeu, durante algum tempo, a noção da posição espacial do corpo e, por isto, queixava-se, a todo momento, de não saber para que lado estava a sua cabeça ou para que lado seu corpo estava virando."

"(Descrição de caso) Perturbações da experiência do ego – Embora nunca encontrássemos perda total da orientação quanto à pessoa, manifestaram-se comumente, em intensidade variável, francos sinais de despersonalização. Interessantes foram os casos em que paulatinamente se esfumavam os limites entre a realidade interna e a externa. [...]"

"(Conclusão) Como se vê, além das modificações várias no plano somático, a ingestão de ácido lisérgico, nas doses indicadas, provoca abundante sintomatologia psicológica, na qual ressaltam as modificações do ego, franca regressão com afloramento de mecanismos arcaicos: dissociação, identificações projetivas e introjetivas, negação. Interessante é o fato de que, mesmo durante o tempo em que está sob a ação da droga, o paciente conserva uma parte do ego que, com justeza, pode observar e descrever as modificações experimentadas por sua personalidade. Tal fato e a possibilidade de conservação, nos dias subseqüentes, da lembrança dos sucessos vividos, permitem obter, tempos depois, relatos muito fiéis da experiência.

Além dos aspectos acima aludidos, o que torna a experiência grandemente valiosa - e, talvez, aí residam as melhores propriedades da droga como auxiliar da psicoterapia - é o aparecimento, sob forma intensamente dramática, de situações e fantasias conflituosas infantis. Tal material surge, não como recordação histórica de algo passado, mas é repetido transferencialmente, sob grande intensidade afetiva, mostrando que ele - presente na atualidade do enfermo - é capaz de modelar sua conduta, dirigir seus sentimentos e interferir no seu contato com a realidade subjetiva e objetiva."

O artigo foi publicado também, no mesmo ano, na Revista de Psiquiatria do CELG – Centro de Estudos Luis Guedes, sob o título Sobre o Uso da Dietilamida do Acido Lisérgico (LSD25) Como Auxiliar da Psicoterapia.

No ano seguinte, em 1963, o psiquiatra Murilo Pereira Gomes, durante uma sessão de temas livres da psiquiatria no XV Congresso Nacional de Medicina, reportou uma pesquisa clínica também investigando os efeitos e possíveis potenciais terapêuticos do LSD. As observações geradas pelo estudo foram publicadas no periódico A Folha Médica (edição 46), em 1963, sob o título Configuração de uma Psicoterapia com o Uso do LSD-25. Os trechos a seguir pertencem ao artigo:

"(Introdução) Em setembro do ano passado, atendendo ao convite de um colega, tomei pela primeira vez a droga e, percorrendo com espírito crítico todo o intenso e dramático curso da experiência, percebi que se abriam de par em par as portas de um campo inteiramente novo e promissor que oferecia a possibilidade de compreender o modo de vivenciar o mundo e a sua patologia, o significado existencial da enfermidade e os caminhos de uma terapêutica por estes conhecimentos norteada. Logo pus-me a buscar toda a bibliografia disponível nos últimos anos [...] Soube, então, que a psicoterapia com LSD era o fascínio de certos grupos psiquiátricos de vanguarda, já tendo sida feita uma conferência em Princeton, 1959, sob a direção de Harold A. Abramsom, cujo relatório foi editado em livro, e um simpósio, o "I Simpósio Europeu sobre Psicoterapia à base de LSD-25", realizado em Göttinger, em 1960, sob a direção de Hanscarl Leuner, Chefe do Departamento de Psicoterapia da Clínica Neurológica da Universidade de Göttinger, Cadeira do Prof. Conrad.

[...]

Exatamente por ter iniciado o conhecimento da droga por uma auto-experiência e por já ter 350h de análise pessoal é que me filiei a esta última corrente. Pode-se discutir a validade ou pelo menos a utilidade do uso de uma droga elaborativa para auxiliar o trabalho psicoterápico, mas é do conhecimento de todos os especialistas em terapêutica psicológica que não são poucos os indivíduos portadores de distúrbios emocionais que oferecem dificuldades ao tratamento, não só não o aceitando a priori como também apresentando uma verdadeira muralha defensiva que impede ou dificulta a obtenção de resultados desejáveis."

"(Técnica) Em contacto com o paciente, procuramos os rumos a seguir no tratamento. Uma vez feita a indicação para a terapêutica do LSD-25, damos início a uma série de entrevistas psicoterápicas nas quais procuramos estabelecer uma relação médico-paciente favorável e tomar conhecimento das representações afetivas a fim de colher material que sirva de instrumento para o trabalho interpretativo durante a situação alucinatória. Certos de que estamos, tanto quanto possível, aptos para elaborar com segurança a comunicação do paciente, damos-lhe a droga e acompanhamos durante todo o tempo necessário.

A dosagem na primeira vez obedece ao critério de peso corporal e nas vezes subseqüentes guiamo-nos pelas respostas apresentadas aumentando ou diminuindo a mesma. A dose preconizada é de 1mcg por quilo de peso corporal. Os alcoolistas e esquizofrênicos costumam suportar grande doses sem manifestar reações.”

(Descrição de caso) Um paciente com conteúdos depressivos durante uma tomada informou que via e sentia como se dentro de si estivesse havendo uma "enxurrada de morro", descendo lama, cacos velhos, latas furadas, penicos enferrujados, "cocô de porco", trapos etc. Isto foi interpretado como a catarse de sentimentos auto-depreciativos e, quando em entrevistas posteriores se referia às dificuldades que sentia em sua vida, relacionava isto ao grupo dos fenômenos da "enxurrada do morro" e que antes da experiência não era capaz de identificá-las. E assim "enxurrada do morro" passou a ser um símbolo compreensível por mim e por ele, de um mundo interior depressivo.”

(Conclusão) A situação lisérgica "realiza" alucinatoriamente o mundo do inconsciente do indivíduo ao mesmo tempo em que o faz participar desta realização, como uma peça teatral, cômica ou dramática, e é exatamente por vivenciar o indivíduo a sua posição como personagem numa enorme peça que tem como palco a vida e personagens, ele, as sua figuras injetadas e os outros que compõem o seu grupo humano, captando a dinâmica das relações externas e internas, é que ele se sente, por assim dizer, informado ou instruído sobre a melhor maneira de realizar o seu plano de vida.

É verdade que destas experiências nasce uma outra dimensão da psicopatologia cujo estudo é um imperativo das descobertas realizadas, e que será oportunamente tratado com a profundidade necessária. Quero deixar claro que este trabalho visa apenas a comunicar o meu ingresso na pesquisa dos alucinógenos.”

Em 1964, nove anos após a (provável) primeira pesquisa nacional com psicodélicos, encontramos mais duas publicações sobre o tema: Sobre um Caso de Desdobramento da Personalidade Analisado com o Auxilio da Dietilamida do Ácido Lisérgico(LSD-25), do psiquiatra José Fraguas Neto, da USP (Universidade de São Paulo), e LSD-25, do psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, doutor em Medicina do Departamento de Psiquiatria da USP. Sobre tais publicações, no entanto, o UltrAlice não conseguiu obter detalhes.

Podemos citar também o médico e químico José Elias Murad, mestre em Farmacologia e Ciências Médicas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Segundo o relato do médico José Alarico Candioti, em um artigo intitulado LSD publicado em 2005, José Elias Murad, então professor de farmacologia na UFMG, submeteu-se a uma experiência clínica publicada com o ácido lisérgico em 1970. Mais uma vez, porém, o UltrAlice não conseguiu obter mais informações.

Temos ainda uma referência à uma pesquisa com LSD na análise da criatividade humana. O historiador da Medicina brasileira (também médico e filósofo) João Amílcar Salgado afirma que, nos anos 50, Santiago Freire, na época professor da UFMG, desenvolveu um experimento onde administrou doses do alcalóide em um grupo de artistas. O historiador, contudo, relata que não se sabe onde encontram-se os registros de tal investigação.

Como última referência, no sentido de resgatar o histórico científico nacional destas substâncias, temos o trabalho do químico e farmacologista Andrejus Korolkova, publicado em 1973 (após o momento em que os psicodélicos foram banidos do território científico na tentativa de bani-los da face da Terra pela política americana da Guerra às Drogas) na Revista Paulista de Medicina, sob o título Interação da Serotonina e Antagonistas com os Receptores. Korolkova desenvolveu uma investigação sobre a relação das substâncias psicodélicas com os receptores de serotonina – equação da qual resulta a teoria mais aceita sobre o mecanismo destas drogas no cérebro humano. O trecho a seguir pertence ao artigo:

(Conclusão) Serotonina vs. Alucinógenos: Os alucinógenos, também chamados psicotomiméticos, psicosomiméticos, psicogênicos, psicodislépticos, psicodélicos, misticomiméticos, ainda que de escassa aplicação terapêutica, apresentam grande interessa prático, pois produzem psicoses, algumas intensas, e são largamente consumidos, a ponto de o uso ilegal dessas substâncias constituir hoje em dia grave problema em alguns países. [...] Não se tendo esclarecido, ainda, as bases farmacológicas e fisiológicas da potência alucinogênica, não é possível formular uma teoria geral da alucinogênese. Há muito, todavia, notou-se o antagonismo entre o LSD e a serotonina, fenômeno este que pesquisas recentes têm confirmado. Conhece-se, igualmente, a tolerância cruzada entre LSD, psilocibina e mescalina. Daí ter surgido a hipótese de os alucinógenos atuarem sobre os mesmos receptores centrais que a serotonina, comportando-se como antagonistas competitivos destas.[...]”

A pesquisa psicodélica nacional teve uma vida supersônica se comparada aos registros e publicações reportadas em países como o Estados Unidos no decorrer de um extenso período. Certamente incide nesta questão o fato de os psicodélicos terem se disseminado, principalmente a partir do território norte-americano, com mais força entre os laboratórios internacionais apenas a partir da segunda metade da década de 50. Estas substâncias, apesar de estarem retornando definitivamente ao status científico após os quase 30 anos de proibição investigativa (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica), não parecem, ainda, ter surtido efeito nos laboratórios brasileiros. Talvez o regime ditatório, que se iniciou em 1964, tenha sido um fator significativamente influente para uma espécie de silêncio irrecuperável sobre o tema, visto que estas drogas, como o LSD, além de protagonistas em uma pesquisa que envolveu artistas, ainda estavam culturalmente entrelaçadas à imagem dos mesmos.