sábado, 20 de junho de 2009

Matérias // A Expectativa Humana no Trato da Pesquisa Psicodélica

"As substâncias conhecidas como psicodélicas, vulgarmente referidas como alucinógenas, representam um grupo de fármacos sem precedentes na história: tais químicos foram capazes de desempenhar um papel científico e sócio-cultural de alcance jamais antes observado em outro grupo. Protagonistas de momentos decisivos relacionados ao conhecimento e comportamento, que implicações esta família de estranhos alcalóides produziu e ainda produz na evolução da expectativa humana?"

// por Ciro MacCord

O conhecimento, nas mais variadas épocas da história, sempre assumiu a habilidade de orientar a expectativa humana na sua relação e compreensão de mundo. Tudo aquilo que é aceito e estabelecido como conhecimento – considerado como a interseção entre a crença e a verdade – transforma-se, automaticamente, numa espécie de bússola: define as direções a serem tomadas e através das quais o olhar investigativo irá lançar suas próximas investidas no imensurável universo do desconhecido.

Este universo, aparentemente infinito, representa não apenas os trilhões de quilômetros intergalácticos, mas também todo o profundo mistério que se estende por dentro do próprio homem: a mente. Desde o início da linguagem, cultura e civilização, o comportamento humano esteve decisivamente direcionado a iluminar e compreender a natureza das coisas e da existência. Com o passar dos anos, aquilo que primordialmente se apresentava como manchas difusas num imenso espaço de escuridão foi, aos poucos, tornando-se claro diante dos olhos da civilização e trouxe conforto para as mentes inquietas e curiosas, mesmo que não desse a mínima pista da existência de um fim ou ponto absoluto. A compreensão parece trazer uma espécie de legitimidade, um referencial através do qual o ser humano se sente mais seguro em ser ele mesmo.

Este processo, de uma busca obstinada pelo reconhecimento de tudo o que existe dentro e ao nosso redor, entretanto, nem sempre traçou um caminho de avanço. A definição de novos referenciais, ao mesmo tempo em que ilumina as sombras do desconhecido, oferece também o perigo da satisfação: se o reconhecimento de uma cadeira em um quarto escuro for o suficiente para trazer segurança, talvez se deixe de tentar reconhecer as outras partes, o que dirá sobre o que existe além do quarto. Assim tem acontecido com o conhecimento humano: a compreensão de certos pontos, antes obscuros, parece satisfazer completamente certas necessidades, e acaba por interromper o processo investigativo, sob a ilusão de que já se alcançou uma espécie de ponto final. Dentro deste panorama, podemos identificar, a grosso modo, dois personagens: o pioneiro – aquele que, insatisfeito, está sempre nas bordas do conhecimento afim de identificar tudo o que exista além deste limite – e o colonialista de idéias – aquele que, satisfeito com qualquer fagulha que o retire do estado de ignorância, torna-se suscetível ao medo irracional por tudo o que represente uma novidade.

É o embate entre estes dois personagens – saudável até determinado ponto – e o resultado deste conflito que, de fato, definem a expectativa humana no universo. A partir daí é que nascem os cânones e os paradigmas, e é também a partir daí que nasce a definição do tempo de vida destes mesmos cânones. A face devastadora deste processo, no entanto, mostra-se quando o equilíbrio alcançado pelo atrito entre pioneiros e colonialistas é fatalmente ameaçado pela prevalência de um dos lados, mais precisamente pelo lado dos colonialistas. Os pioneiros passam a enfrentar um contra-fluxo tão intenso que é capaz de silenciá-los: aqui eles são cegamente confundidos com loucos. O conhecimento tende a perder o dinamismo, e o avanço da compreensão humana é comprometido pelos mecanismos fundamentalistas que evitam a quebra e a reconstrução. Desta forma, as novas idéias são arbitrariamente descartadas (ver matéria: A Abordagem Capenga Sobre as Novas Ciências).

Muitas vezes, porém, em uma espécie de autodefesa, esta paralisação do conhecimento é revertida através de rupturas violentas e movimentos de massa. É como se o panorama das idéias humanas, ao tornar-se estático, atingisse um nível crítico onde uma espécie de insight coletivo leva grandes populações a questionar e, de fato, a lutar contra o rumo absolutista. Estes movimentos, na grande maioria das vezes e infelizmente, são patrocinados por uma boa dose de violência.

No meio deste processo, desta definição da expectativa através do conhecimento, encontramos a pesquisa psicodélica como um exemplo categórico: uma nova epistemologia, ao mesmo tempo em que ilumina as sombras do desconhecido, enfrenta o pânico daqueles que, satisfeitos com a rigidez cadavérica de seus paradigmas, tentam, desesperadamente, silenciar os novos conhecimentos. Esta pesquisa, delineada pela investigação de um complexo grupo de substâncias – os psicodélicos – procura estabelecer, desde a entrada destes químicos nos laboratórios em meados dos anos 40 e 50, implicações terapêuticas e buscas pela natureza do comportamento, mente e cérebro humanos.

Impulsionada pela descoberta do mais controverso psicodélico, o ácido lisérgico (LSD), em 1943 pelo químico suíço Albert Hoffmann, a pesquisa psicodélica estabeleceu-se, de forma definitiva, como uma vanguarda científica baseada em resultados positivos. Do final dos anos 40 ao início dos anos 70 estas substâncias foram incansavelmente estudadas, sob os mais diversos olhares e desencadearam o nascimento de uma perspectiva através da qual um horizonte completamente novo descortinou-se dentro dos laboratórios. As áreas mais drasticamente afetadas pela novidade dos psicodélicos – Psiquiatria e Psicologia – tornaram-se líderes de um movimento pela busca de respostas e reconhecimentos. E a relação humana com tais alcalóides – afinidade comprovadamente milenar que nos remonta às mais antigas manifestações xamânicas – fornecia um ânimo ainda maior frente à curiosidade científica.

O que causava tal fervor entre os cientistas e pesquisadores permanece, ainda hoje, como um emblemático fator: a natureza da experiência psicodélica. Surpreendentemente, e muito diferente da visão popular moderna, os efeitos destas substâncias jamais poderiam resumir-se no aspecto alucinatório (ver matéria: Afinal: Psicodélicos, Alucinógenos, Psicomiméticos, Enteógenos ou Psicodislépticos?): algum mecanismo faz com que tais alcalóides, ao penetrar os complexos emaranhados cerebrais, provoquem um estado incomum de percepção do próprio ser, da própria consciência e da maneira como ela está inserida no universo. Muito mais do que as visões caleidoscópicas e multi-coloridas, as profundas manifestações psíquicas e cognitivas desencadeadas denunciavam a existência de lacunas e indagações sobre a natureza humana.

Tais manifestações apresentavam-se de forma tão intensa que foram, em princípio, comparadas aos distúrbios de personalidade e psicoses em geral. Experiências de despersonalização, onde o paciente, por um determinado momento, simplesmente perdia a identidade consigo mesmo, com seu próprio corpo e ego, vivências de estados insólitos, em que se parecia extrapolar o universo comum da linguagem, personalidade e cognição, levaram muitos psiquiatras a considerar a experiência psicodélica como uma espécie de mimetismo de distúrbios psicopatológicos como a esquizofrenia.

A grande questão era que a própria loucura figurava (e figura até os dias de hoje) como um mistério: o que seriam, de fato, tais estados não usuais de interpretar o mundo? Desencadeados ou não por fatores orgânicos e biológicos, como categorizar a complexa natureza de maneiras estranhas e completamente distintas de perceber a realidade? A questão não residia na patologização das desordens mentais, mas sim na investigação da natureza destas desordens: que mundo é este onde um esquizofrênico existe? São estas realidades menos palpáveis e reais do que a realidade considerada como correta e absoluta? As drogas psicodélicas trouxeram todas essas questões à tona, uma vez que provocavam, sinteticamente, vivências extraordinárias de percepção.

Temas aparentemente não interligados, como desordens mentais, transes místicos e religiosos e drogas, de repente, reuniram-se através de novas implicações. Que estranho poder era este que capacitava tais substâncias a lançar vertiginosamente a consciência em mundos estranhos e irreconhecíveis? Indo além, que estranho poder era este que, a partir de uma fórmula química exata, provocava experiências tão subjetivas? Os psicodélicos representavam estranhas substâncias na medida em que, ao contrário do que se espera geralmente, não suscitavam efeitos objetivos e delimitados. Muito pelo contrário, os resultados eram sempre preenchidos por uma idiossincrasia jamais antes verificada sob o efeito de outros fármacos. E, para tornar ainda mais complexa a dinâmica, ainda provocavam um efeito conhecido como psicolítico: liberavam conteúdos pessoais reprimidos na forma de revivências e reconhecimentos da natureza da própria personalidade, como traumas, medos profundos, motivações e tramas afetivas.

Investigações sobre a consciência, pesquisas sobre as desordens mentais, psicoterapia auxiliada por psicodélicos, entre outros, foram alguns dos muitos direcionamentos tomados pela ciência em função do novo universo onde estas substâncias eram protagonistas. O poder destes alcalóides, no entanto, apresentou-se de forma tão intensa que não conseguiram suportar os limites científicos, e, a partir dos anos 60, escaparam dos laboratórios e disseminaram-se entre grandes populações, principalmente em território norte-americano. O processo de escape, porém, causou o desmoronamento da pesquisa psicodélica: a partir do momento em que drogas como o LSD tornaram-se propulsores da Contracultura através do propagandismo hippie de que expandiam a consciência, elas tornaram-se os alvos em primeiro instância das políticas públicas.

Assombrados pelas indagações de um movimento que questionava a hegemonia capitalista, os Estados Unidos, seu melhor representante, inauguraram um contra-ataque baseado em jogadas políticas violentas, patrocinadas por propagandas massivas e deformação de informação. É fato que o uso indiscriminado e inconsciente destas substâncias trouxe uma série de danos à saúde pública, na medida em que a experiência psicodélica, sem auxílio científico ou monitoramento, oferecia o risco de lesões psíquicas severas. O grande problema do consumo recreativo destes alcalóides não repousa na sua toxicidade, mas na imprevisibilidade dos efeitos psicológicos.

Baseado na utilização incansavelmente repetida deste fator e na propagação de falsas informações, como a de que o LSD provocava perigosas alterações no DNA, entre outras, o governo americano moldou a mais demoníaca das imagens para tais químicos. E, decididos a erradicar os psicodélicos da face da Terra, procuraram anular, arbitrariamente, todas as implicações terapêuticas legítimas e honestamente investigativas sobre os psicodélicos. Como resultado, o grupo de alcalóides que vinha desafiando a compreensão da ciência de maneira refinada foi violentamente lançado nas sombras de um silêncio devastador.

Durante aproximadamente 30 anos, que se iniciaram nos primeiros anos da década de 70, a política americana, disseminada internacionalmente, tratou de aniquilar a expectativa humana ligada ao novo e desconhecido universo denunciado por tais substâncias. O avanço do capitalismo e de uma epistemologia tecnocrata ainda contribuíram expressivamente para que esta expectativa – metafísica na maior parte da sua natureza – se tornasse uma espécie de devaneio ou misticismo para o qual não se devia prestar a mínima atenção. Durante estas três décadas o que se viu foi a condenação de uma nova abordagem nos moldes de uma reprovação colonialista em contraponto aos avanços pretendidos por pioneiros.

Hoje este panorama têm se transformado positivamente, e, mais uma vez, os psicodélicos têm adentrado os laboratórios da ciência de maneira elegante (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica): há um importante resgate que comprova, a cada dia, a existência de lacunas e a urgência por novas propostas. Uma série de frentes modernas tem devolvido escopo científico ao grupo de substâncias e ratificado o imenso potencial terapêutico e investigativo trazido por elas. Os pioneiros têm encontrado um caminho significativamente mais aberto para o desenvolvimento de um novo conhecimento capaz de clarear muitas das dúvidas e questões obscuras que ainda nos rondam.

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